quinta-feira, março 30, 2006

Chop Off!

A tolerância é a capacidade de suportar o desagradável. Para uma personalidade susceptível pode mesmo representar a faculdade de suportar o intolerável. O susceptível cai portanto no ridículo por incursar numa contradicção lógica. É desnecessária a demonstração de um exemplo por ser do senso comum que existem exemplos. Isto é um modo político de dizer que não me ocorre nenhum. Ser tolerante é, como tal, uma qualidade rara e louvável, que suaviza as atmosferas, apela ao respeito colectivo e previne os conflitos. Que fazer, porém, quando a tolerância falha? Ou quando nos escapa, a nós, a capacidade de sermos tolerantes?
Se pudéssemos às vezes (penso eu nessas horas), sem aplicações de leis, sem noções de culpa ou pesos na consciència, sem censuras, sem consequências, cortar umas quantas cabeças, esfregá-las na lama, deitá-las depois a uma fogueira e tomar calmamente um digestivo, como quem descansa o corpo de um trabalho e o alivia de uma má refeição…
É curioso notar o que pode, em cada pessoa particular, e em cada circunstância precisa e alterável, representar um alívio; e o que, por oposição, representa um fardo, uma tortura, um sufôco…
Eu, por exemplo, sou de uma instabilidade assombrosa. E as contrariedades à minha personalidade, à minha natureza sensível, afectam-me profundamente, causam-me dores físicas e sentimentais, revoltam-me em explosões de raiva tão violentas que me assustam e envergonham. E, no final do espectáculo, sobra mais uma amostra da minha decadência e um engrossar do meu desprezo pelo Homem… E o pior…
O pior é essa desilusão amarga ao perceber que as minhas metáforas são inconcretizáveis. Talvez apenas por isso sejam metáforas… Mas a verdade é que a amargura fica, o ressentimento rói o nosso corpo, e o ofensor segue o seu caminho com um sorriso nos lábios e a cabeça nos ombros…
E no entanto:
Se é do acordo geral que decaímos, que fazemos do Mundo um armazém de excedentes, que o Futuro já não promete o esforço do progresso mas o da manutenção, que a Sociedade é uma pocilga que se alastra e não pede tolerâncias a ninguém, porque não avançar com o culto sério de cortar cabeças? É no fundo como retomar a ânsia déspota da Raínha de Copas, mas sendo nós, desta vez, quem segura o machado, para ceifar o crânio do Sistema… (Aveiro, 29/10/05)